O Brasil ainda convive com uma chaga silenciosa: o analfabetismo funcional. Segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), divulgado em maio de 2025, 29% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são incapazes de compreender textos simples ou realizar tarefas básicas com números. A taxa não apresentou avanço desde 2018. Entre pessoas de 50 a 64 anos, o índice sobe para 51%. Pretos e pardos, historicamente mais vulneráveis, também estão sob maior risco de exclusão educacional.
Neste cenário, a alfabetização de adultos encontra na igreja um terreno fértil para se expandir. Ali, o ato de aprender a ler se entrelaça com fé, pertencimento e dignidade. Ao acessar a Bíblia com os próprios olhos, homens e mulheres que não tiveram acesso à escolarização formal se reencontram com Deus de maneira profunda e libertadora.
“Um dos principais desafios é preparar líderes e voluntários para lidar com essa realidade. Muitas vezes, há exigências que excluem”, afirma o pastor Jorge Souto, da Comunidade Evangélica Jesus Vive, na Tijuca (RJ). Ele relata o caso de uma familiar que, após se converter, começou a frequentar a Escola Bíblica com entusiasmo.
Tudo corria bem até que um professor entregou uma atividade escrita e disse que quem não levasse as respostas na semana seguinte não poderia continuar na turma. “Ela se sentiu constrangida por não saber ler nem escrever. Estava aprendendo pelo ensino oral, mas diante da exigência acabou desistindo. A meritocracia espiritual afasta quem mais precisa ser acolhido”.
Para ele, a igreja deve recorrer a recursos como áudios, dramatizações, Bíblia falada, vídeos com linguagem acessível e uma abordagem individualizada. “A alfabetização deve ser parte da missão da igreja, numa integração entre evangelização, educação e ação social”, diz, citando Romanos 15:7: “Portanto, recebei-vos uns aos outros, como também Cristo nos recebeu para glória de Deus”.
Alfabetizar também faz parte da missão
O teólogo Atila Ribeiro, diretor do Instituto Teológico Dünamis, destaca os desafios teológicos e pastorais desse processo. “A missão da igreja é formar discípulos e isso inclui ensinar todas as coisas que Cristo ordenou. Para isso, no entanto, é preciso que o crente tenha acesso à leitura compreensiva da Palavra. Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, como diz 2 Timóteo 3:16. Isso pressupõe que o texto seja lido e entendido”.
Com base na perspectiva pastoral e acadêmica, Atila reforça que a alfabetização bíblica não pode ser tratada como um recurso opcional dentro da igreja. “Incluir adultos recém-alfabetizados no ensino das Escrituras é um ato de justiça do Reino. Isso revela o coração inclusivo de Deus, que não faz acepção de pessoas, como lemos em Atos 10:34.
O discipulado precisa ser formativo, não apenas informativo, e isso exige sensibilidade para adaptar o conteúdo sem diluir a essência da fé. A Palavra continua a mesma, mas os caminhos para alcançá-la precisam ser diversos e acessíveis”.
Atila lembra que muitos desses adultos carregam o peso de uma história de exclusão educacional e religiosa. “A igreja, como comunidade terapêutica e pedagógica, deve agir com graça e paciência, aplicando os princípios de 1 Coríntios 12:22-25, que ensinam que os membros menos honrados são indispensáveis. O discipulado precisa ser adaptado, sem perder profundidade, com recursos orais, visuais e relacionais”.
Um divisor de águas
O pastor Francisco Rosa, da Igreja Batista Missionária em Éden, no Rio de Janeiro, vê na alfabetização um divisor de águas. “Hoje a alfabetização na fase adulta tem sido uma realidade na vida de milhares de brasileiros. São pessoas que não tiveram oportunidade de frequentar a escola e ficaram à margem da sociedade. A leitura da Bíblia, nesse contexto, fortalece a fé e promove uma participação mais ativa na comunidade”.
Para ele, o impacto não é apenas espiritual. “A leitura funcional leva o indivíduo a compreender melhor a vida e a se tornar crítico diante das diversas manifestações da sociedade. A leitura é o primeiro passo para a liberdade e para a expansão da existência”. Ele cita a orientação de Paulo a Timóteo: “Persiste em ler” (1 Timóteo 4:13).
Em Vitória (ES), o pastor Fábio Andrade, da Igreja Batista Resgate, vai além. “Somos o povo da Bíblia. Cremos no Deus que se revela pela Palavra. É uma afronta existirem pessoas na igreja local que não sabem ler e nada ser feito para mudar isso. A alfabetização, ainda que tardia, abre um portal para uma intimidade totalmente nova com Deus”.
Segundo ele, a fé que antes era sustentada pelo ouvir passa a ser também alimentada pelo ler. “Essa apropriação pessoal da Palavra fortalece a convicção e aprofunda a caminhada cristã. Deus deixa de ser apenas falado. Ele passa a ser lido e compreendido de forma íntima.”
O pastor Marcos Soares Gonçalves, da Assembleia de Deus Igreja da Família em Pedra de Guaratiba (RJ), faz um alerta social. “O analfabetismo no Brasil representa 4,3% da população, o que equivale a mais de nove milhões de pessoas em vulnerabilidade educacional. Isso é muito para um país que se diz em crescimento”.
Ele defende que erradicar o analfabetismo, inclusive o funcional, deveria ser a prioridade número um de qualquer governo. “Muitos que se alfabetizaram por conta própria usaram a Bíblia como ferramenta. Com políticas públicas aliadas à ação das igrejas, esse processo poderia ser muito mais eficaz”.
Educação que gera frutos
Na mesma cidade, o pastor Eder Reis, da Assembleia de Deus na Tijuca, testemunha os frutos espirituais da alfabetização. “Os adultos recém-alfabetizados, ao se encontrarem com a Bíblia, passam a ver sentido na vida, ganham direção, descobrem promessas e experimentam consolo”.
Ele relata a história de uma senhora que aprendeu a ler em um projeto da igreja. O maior sonho dela era ler a Bíblia sozinha. “Um dia, ela conseguiu ler um versículo e chorou profundamente. Disse: ‘Antes, eu ouvia Deus pela boca dos outros. Agora, eu leio a voz de Deus com os meus próprios olhos’. Essa frase nunca saiu da minha memória. Foi um dos momentos mais impactantes do meu ministério”.
A alfabetização bíblica se revela, assim, como uma ponte entre fé, cidadania e dignidade. O ensino da Palavra, quando adaptado com amor e paciência, torna-se mais que informativo. Ele se transforma em um ato pastoral que acolhe e restaura. Como ensina 2 Timóteo 2:24-25, “ao servo do Senhor não convém brigar, mas ser amável para com todos, apto para ensinar, paciente. Deve corrigir com mansidão”.
Embora milhões de brasileiros ainda enfrentem barreiras para acessar o universo da linguagem escrita, a igreja tem se consolidado como um espaço essencial para romper esse ciclo de exclusão. Quando a leitura da Bíblia se torna uma experiência pessoal, não é apenas a fé que se fortalece.
A dignidade também é restaurada. Ensinar alguém a ler, nesse contexto, significa abrir caminho para que cada pessoa descubra, por si mesma, a presença viva de Deus nas palavras sagradas. Ler, então, deixa de ser um ato mecânico e passa a ser um encontro.
Fonte: Comunhão