Hoje, 13 de julho, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 35 anos – uma das legislações mais avançadas do mundo na defesa dos direitos da infância. Criado para garantir proteção integral a crianças e adolescentes, o ECA mudou a forma como o Brasil enxerga sua população mais jovem; não mais como objetos de tutela, mas como sujeitos de direitos. Ainda assim, mais de três décadas depois, o desafio continua sendo tirar esses direitos do papel e torná-los realidade para todos.
A ONG Visão Mundial, presente no Brasil desde 1975 e uma das organizações que atuaram na construção do Estatuto, reforça que, apesar dos avanços institucionais, a infância brasileira continua vulnerável e agora diante de novas e antigas ameaças.
“Vivemos um momento crítico. A violência se sofisticou. Hoje, ela não está apenas nos lares e nas ruas, mas também nos celulares, nos algoritmos, nas narrativas que desumanizam a infância. O ECA precisa ser defendido, sim, mas também precisa evoluir para responder a esses novos desafios”, afirma Thiago Crucitti, diretor nacional da Visão Mundial Brasil. “Proteger nossas crianças hoje significa também olhar para as novas tecnologias, combater desigualdades estruturais e garantir que os direitos previstos na lei cheguem a todos, sem exceção”, conclui.
Segundo o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), considerando-se a faixa etária de 0 a 2 anos, a proporção de crianças usuárias de internet saltou de 9% em 2015 para 44% no ano passado. Já na faixa etária de 3 a 5 anos, o salto foi de 26% para 71% no mesmo período e, entre 6 e 8 anos, o uso dobrou, passando de 41% para 82%, reforçando que o ambiente digital virou terreno fértil para novas formas de violação. A exposição a conteúdos sensíveis, o cyberbullying e o aliciamento para crimes sexuais acontecem diante de uma legislação que ainda não compreende plenamente a lógica e os impactos desse ecossistema.
De acordo com a rede internacional InHope, o Brasil foi o 5º país com mais denúncias de abuso sexual infantil online em 2024, com mais de 52 mil páginas denunciadas contendo material ilegal. Somado a isso, a SaferNet Brasil registrou em 2023 um recorde histórico de 71 mil denúncias relacionadas à exploração sexual infantil, um crescimento de 84% em comparação ao ano anterior.
“Esses dados escancaram a urgência de que o ECA seja atualizado com mecanismos de regulação digital, moderação ativa de conteúdo e responsabilização das plataformas, que hoje operam sem barreiras eficientes”, comenta Crucciti.
A Visão Mundial alerta ainda para a falta de políticas públicas voltadas à educação midiática e o vazio de monitoramento parental. A ONG defende que o Congresso avance em projetos como a regulação das plataformas digitais, enquanto as escolas e comunidades se fortaleçam para prevenir e combater as novas formas de violência digital.
A violência sexual contra crianças continua sendo uma das violações mais brutais e invisíveis do país. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam que quase 100 crianças sofrem violência sexual por dia no Brasil, sendo 82% meninas. Em 85% dos casos, o agressor é alguém do convívio da vítima. Em pesquisa do Atlas da Violência 2025, a cada hora, 13 crianças e adolescentes de até 19 anos sofreram algum tipo de violência em 2023, entre física, psicológica, sexual e negligência. Foram 115.384 vítimas registradas no país, um aumento de 36,2% em relação ao ano anterior.
Uma das respostas mais conhecidas a esse cenário, por exemplo, foi a criação da Coalizão Pelo Fim da Violência Contra Crianças e a Adolescentes, uma articulação nacional composta por organizações da sociedade civil (incluindo a Visão Mundial) — laica, independente e suprapartidária — que trabalha para prevenir e enfrentar todas as formas de violência contra crianças e adolescentes no Brasil. Formada no final de 2017, reúne atualmente entre 40 e 77 entidades, incluindo institutos, universidades, coletivos e movimentos sociais.
“Iniciativas que conscientizam a sociedade sobre a violência sexual de crianças e adolescentes, como a coalizão, são importantes porque se somam ao ECA, resultando em um moderno arcabouço legal sobre a infância, e não há limite aprofundarmos o debate sobre a segurança dos jovens brasileiros”, analisa Crucitti.
A ONG Visão Mundial e o ECA: uma história em defesa da infância
A organização Visão Mundial participou ativamente dos debates que originaram o ECA em 1990, atuando com outras organizações da sociedade civil na mobilização por um marco legal que colocasse a criança no centro da política pública. Desde então, a ONG tem desenvolvido programas de proteção, educação, advocacy e resposta a emergências, atendendo crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade em todo o território nacional.
Para além da celebração da data, a organização propõe que o Brasil transforme o 13 de julho em um marco de renovação de compromissos com a infância, voltado não só à memória, mas à ação concreta.
“Mais do que nunca, é hora de refletir. Estamos avançando na proteção das nossas crianças ou ainda enfrentamos os mesmos desafios de décadas atrás, como a negligência, a violência e a falta de acesso a direitos básicos? O ECA representou um marco essencial na história do país, mas sua efetivação depende de compromisso contínuo, atualização frente aos novos contextos e ação concreta em todas as esferas da sociedade. O ECA é uma conquista, mas que precisa ser defendida todos os dias”, conclui Crucitti.
Projetos em tramitação no Congresso propõem nova era de proteção infantil na internet
Em meio ao crescimento de denúncias de exploração sexual, cyberbullying, exposição a conteúdos sensíveis e desafios perigosos nas redes sociais, parlamentares tentam acelerar a votação de propostas que buscam preencher lacunas legais deixadas por uma norma criada em 1990, antes da popularização da internet e das plataformas digitais. No último mês, junho, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados realizou uma audiência pública para discutir a vulnerabilidade de crianças e adolescentes no ambiente digital.
A expectativa é que esses projetos ganhem força ainda em 2025, impulsionados por dados alarmantes. Segundo a rede internacional InHope, o Brasil foi o 5º país do mundo com mais denúncias de abuso sexual infantil online em 2024. Já a SaferNet Brasil registrou 71 mil denúncias desse tipo em 2023, um aumento de 84% em relação ao ano anterior.
Para especialistas que atuam na linha de frente da proteção à infância, como a ONG Visão Mundial, presente no Brasil desde 1975 e uma das organizações que atuaram na construção do ECA, os projetos representam um avanço necessário para enfrentar um cenário que se agrava em silêncio. “A internet se tornou parte da vida cotidiana das crianças. Mas enquanto elas navegam, interagem e consomem conteúdo, o Brasil ainda opera com uma legislação que não as protege adequadamente nesse ambiente”, afirma Thiago Crucitti, diretor nacional da Visão Mundial Brasil.
Conheça os principais projetos em discussão:
PL 2628/2022 – Marco legal para proteger crianças e adolescentes em ambientes digitais
O Projeto de Lei 2628/2022, de autoria do senador Alessandro Vieira é o principal projeto com envolvimento da Visão Mundial e parceiros, inclusive com a intermediação da ONG na criação de grupos de trabalho com outras organizações sociais. Ele propõe a criação de um marco legal para proteger crianças e adolescentes em ambientes digitais. A proposta estabelece regras para limitar a coleta e o uso de dados pessoais de menores, proíbe o perfilamento e a publicidade direcionada sem consentimento, e exige mecanismos eficazes de verificação etária, especialmente para impedir o acesso de crianças com menos de 12 anos a determinadas plataformas.
Além disso, o texto impõe responsabilidades às empresas de tecnologia, como a obrigação de remover imediatamente conteúdos ilegais ou prejudiciais, independentemente de ordem judicial, e implementar medidas preventivas contra abusos como bullying, assédio e exposição a conteúdos inapropriados.
O projeto foi aprovado no Senado em 2024 e está atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, onde passou por audiências públicas e recebeu dezenas de emendas. O debate se concentra em temas como a diferenciação entre crianças e adolescentes, os limites à atuação das plataformas digitais e as exceções para campanhas de interesse público.
PL 4474/2024 – Ambientes digitais seguros para crianças
De autoria da deputada Tábata Amaral (PSB-SP), o projeto altera o Marco Civil da Internet, o ECA e a Lei Geral de Proteção de Dados para estabelecer medidas específicas de segurança para crianças e adolescentes em plataformas digitais.
A proposta obriga empresas a: Implementar verificação de idade ativa; Criar ambientes certificados para crianças, com navegação segura e ausência de publicidade comportamental; Produzir relatórios de impacto sobre privacidade e segurança infantil; Disponibilizar recursos de denúncia acessíveis para crianças e responsáveis. O texto já passou pela Comissão de Educação da Câmara e avança agora nas comissões de Ciência e Tecnologia e de Constituição e Justiça.
PL 663/2025 – Regulamentação do uso de redes sociais por menores
De autoria do deputado Ricardo Silva (PSD-SP), o projeto cria regras claras para o uso de redes sociais por crianças e adolescentes, com base na faixa etária. Entre os principais pontos estão: Proibição do uso de redes sociais por menores de 12 anos sem autorização e supervisão dos pais; Exigência de verificação de idade por meio de documentos ou tecnologia confiável; Limitação de funcionalidades, como bloqueio de mensagens diretas de adultos desconhecidos para menores; Restrições de conteúdo sensível e notificações excessivas; Penalidades para plataformas que não cumprirem as regras.
Segundo o autor, o projeto busca proteger a saúde mental e emocional dos jovens, especialmente diante da disseminação de conteúdos tóxicos, como discursos de ódio, culto ao corpo, automutilação e erotização precoce.
PL 2551/2025 (Senado) – Supervisão parental obrigatória
Em análise no Senado, esse projeto estabelece que é dever legal dos pais e responsáveis supervisionar o uso da internet por crianças e adolescentes sob sua guarda. A medida busca reforçar o papel da família na mediação do acesso digital, mas também prevê campanhas públicas para conscientizar sobre o uso saudável da tecnologia, bem como incentivos ao desenvolvimento de ferramentas de controle parental. O projeto está sendo analisado na Comissão de Direitos Humanos e pode seguir para a Comissão de Educação.
PL 777/2025 – Transparência e responsabilização das plataformas
A proposta visa atualizar o Marco Civil da Internet e o ECA, tornando mais rígida a atuação das plataformas digitais quando houver conteúdos que violem direitos de crianças e adolescentes. Dentre as principais mudanças, o texto prevê: Obrigatoriedade de relatórios públicos sobre moderação de conteúdo infantojuvenil; Prazo máximo para remoção de conteúdos abusivos; Multas pesadas e responsabilização civil de plataformas em caso de omissão. A proposta dialoga com experiências internacionais, como a Lei de Serviços Digitais da União Europeia, e pode abrir caminho para uma regulação mais robusta no Brasil.
ONG Visão Mundial: “O ECA precisa alcançar o mundo digital”
A ONG, que participou da construção do ECA em 1990, defende a atualização da legislação para contemplar a realidade digital e cobra do Congresso agilidade na tramitação das propostas. “O ECA é uma conquista, mas que precisa ser defendida e adaptada todos os dias. A violência online é real, tem deixado marcas profundas e exige uma resposta institucional à altura”, completa Crucitti.
Segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil, 9 em cada 10 crianças entre 9 e 17 anos acessam a internet todos os dias, mas apenas 26% afirmam que há algum acompanhamento dos pais ou responsáveis sobre o que consomem. Além disso, 22% já viram conteúdo sexual; 19% foram vítimas de xingamentos ou humilhações; 16% relataram ter sofrido discriminação online.
O cenário preocupa para a Visão Mundial, além da legislação, é urgente que escolas, conselhos tutelares e campanhas públicas estejam preparados para atuar na prevenção e acolhimento das vítimas. Todos os projetos citados ainda tramitam nas comissões da Câmara e do Senado. Para que avancem, dependerão de mobilização política e apoio da sociedade civil. “Essa é uma oportunidade concreta de atualizar a proteção da infância brasileira. Não podemos perdê-la”, conclui Crucitti.
Sobre a Visão Mundial: A World Vision, conhecida no Brasil como Visão Mundial, é uma organização humanitária cristã dedicada a trabalhar com crianças, famílias e comunidades para combater as causas da pobreza e da injustiça. No Brasil desde 1975, atua nas áreas de proteção, educação, advocacy e emergências, priorizando populações em situação de vulnerabilidade, independentemente de religião, raça ou gênero. Mais informações: www.visaomundial.org.br