Integrantes da facção Terceiro Comando Puro (TCP) no Ceará usaram o nome de Jesus para cometer intolerância religiosa contra terreiros em Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza.
Entre 20 e 26 de setembro, seis centros umbandistas fecharam ou receberam ameaças, segundo relatos de ativistas e lideranças locais. Quatro terreiros cessaram atividades — dois na Vila das Flores e dois em Santa Marta — e outros dois, nos Conjuntos Timbó e Jereissati I, foram advertidos a encerrar ritos.
Cada casa reúne cerca de 30 a 40 frequentadores, de acordo com interlocutores próximos às vítimas.
Os pedidos de ajuda foram enviados no fim da última semana de setembro e chegaram à Secretaria Estadual da Igualdade Racial (SEIR) e à Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). A comunicação foi realizada por ativistas de movimentos sociais, religiosos e da cultura negra. Segundo apuração, o caso é tratado com cautela para dimensionar o problema e a Delegacia de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Intolerância Religiosa ou Orientação Sexual (Decrin) deverá conduzir a investigação.
Em mensagem enviada em 29 de setembro, a titular da SEIR, Zelma Madeira, afirmou: “A Seir tem grande preocupação e estamos ainda em tratativas”. Ela acrescentou que buscaria se inteirar dos detalhes após reuniões já agendadas. A SEIR marcou para 02 de outubro uma reunião de escuta das vítimas e definição de orientações a representantes de povos de terreiros.
Lideranças de terreiros de Maracanaú também previam encontro na noite de 30 de setembro, no município, para discutir os episódios e alinhar respostas comunitárias.
Posição da Segurança Pública
Procurada, a SSPDS respondeu, em nota, que “não há registro oficial sobre ameaças a terreiros, em Maracanaú — Área Integrada de Segurança 12 (AIS 12)”. A pasta informou, porém, que equipes da Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE) e da Polícia Militar do Ceará (PMCE) foram mobilizadas para acompanhar a situação. No mesmo comunicado, a SSPDS destacou “o compromisso com a proteção à liberdade religiosa” e orientou que “caso alguém sinta sua crença desrespeitada em público, em redes sociais ou for impedida de praticar sua fé, pode formalizar denúncia anônima”.
A Seir informou estar em contato com a SSPDS e alinhou suas informações ao posicionamento da Segurança.
Como ocorreram as ameaças
Relatos indicam que os locais foram procurados diretamente por supostos integrantes da facção ou contatados por telefone e aplicativos de mensagem. As mensagens exigiam a interrupção das celebrações, que ocorriam ao menos uma vez por semana, sob ameaça de ataques caso continuassem. Até o momento, não há informação de agressões físicas ou atentados anteriores aos fechamentos.
As vítimas evitam expor-se publicamente por temor de retaliações. Um interlocutor afirmou: “De fato as pessoas não estão querendo se expor. Existe um clima de medo muito grande”. Há indicações de que outras casas religiosas tenham sido procuradas, mas optaram pelo silêncio.
Presença do TCP
O Terceiro Comando Puro é uma facção de origem carioca, fundada no início dos anos 2000, com histórico de violência contra religiões de matriz africana, como candomblé e umbanda. De acordo com registros locais, a facção mantém presença no Ceará desde meados de 2024, com prisões e apreensões pontuais. Na segunda quinzena de setembro, seu desembarque tornou-se mais ostensivo, com pichações e demonstrações públicas de influência em áreas sob domínio da facção Guardiões do Estado (GDE).
Neste período, foi anunciada uma aliança entre o TCP e a GDE, que rivalizam com o Comando Vermelho (CV) por territórios e mercados ilícitos. Integrantes do TCP se autodeclaram evangélicos, prática que, segundo pesquisadores da área de segurança, é instrumentalizada pela facção, extrapolando o conceito de fé e associando símbolos — como a Estrela de Davi — aos seus “salves”.
Dimensão local do impacto
Maracanaú tinha 24 terreiros mapeados até o início de 2025, conforme levantamento de organizações não governamentais ligadas a movimentos sociais do município. A estimativa de lideranças locais, porém, é de cerca de 50 casas em funcionamento, número que inclui espaços não formalmente registrados. A pressão sobre os terreiros atinge comunidades com 30 a 40 praticantes por casa, impactando centenas de pessoas entre líderes religiosos e frequentadores.
Linhas de apuração
A expectativa é de que a Decrin consolide boletins de ocorrência e depoimentos para qualificar os fatos como intolerância religiosa, ameaça e outras tipificações pertinentes. A SEIR deve sistematizar as demandas apresentadas na escuta de 02 de outubro, propondo medidas de proteção e articulação interinstitucional com a Segurança Pública e o Ministério Público. Organizações da sociedade civil tendem a reforçar canais de denúncia, inclusive anônima, e a orientar terreiros sobre protocolos de segurança e documentação de evidências (prints, áudios e vídeos) para subsidiar as investigações.
Recorrência
O Brasil reconhece a liberdade de crença e o livre exercício dos cultos religiosos como direitos fundamentais, conforme o artigo 5º da Constituição Federal. No plano infraconstitucional, atos de discriminação religiosa podem se enquadrar na Lei nº 7.716/1989, que define crimes resultantes de preconceito, e em dispositivos do Código Penal relativos a ameaça e associação criminosa. No Ceará, a criação de delegacias especializadas — como a Decrin — buscou qualificar a investigação de crimes de intolerância e discriminação.
Até 02 de outubro, a SSPDS não havia registrado ocorrências oficiais sobre as ameaças em Maracanaú, mas mantinha equipes mobilizadas. A SEIR tratava o tema como prioridade, com reuniões agendas e acompanhamento direto às vítimas. As lideranças religiosas locais permaneciam reticentes em se manifestar publicamente, alegando risco de novas investidas.
Resumo:
- Período dos casos: 20 a 26 de setembro.
- Atingidos: 4 terreiros fechados (Vila das Flores e Santa Marta) e 2 advertidos (Timbó e Jereissati I).
- Audiências: reunião de escuta na SEIR em 02 de outubro; encontro comunitário em 30 de setembro.
- Posições oficiais: SEIR “em tratativas”; SSPDS sem registro oficial, mas com policiamento acionado e orientação para denúncias anônimas.