Um movimento religioso e identitário tem ganhado visibilidade no Nordeste: templos evangélicos vêm sendo convertidos em sinagogas e um número crescente de fiéis, muitos deles ex-evangélicos, declara adesão ao judaísmo.
Os protagonistas se apresentam como bnei anussim — expressão hebraica para “filhos dos forçados” — em referência aos sefarditas convertidos compulsoriamente ao cristianismo durante a Inquisição na Península Ibérica, no século 15.
Com base em relatos genealógicos e na memória de famílias conhecidas como cristãos-novos, esses grupos organizam comunidades judaicas em bairros periféricos e cidades menores.
Exemplos dessa reorganização foram registrados em Messejana, na periferia de Fortaleza (CE), no bairro Branca Dias, em Campina Grande (PB), e em Tibau (RN). Nesses locais, antigos templos evangélicos passaram a funcionar como sinagogas, com símbolos judaicos, observância do sábado e rituais próprios. Em algumas comunidades, antigos pastores assumiram funções de liderança religiosa, enquanto fiéis adotaram talit, kipá e o uso da Torá nas liturgias. Há registros de integrantes que emigraram para Israel e, em casos pontuais, de jovens que servem nas Forças de Defesa do país.
O reconhecimento institucional, contudo, permanece tema de debate. Setores do judaísmo ortodoxo questionam a validade de conversões realizadas sem supervisão rabínica reconhecida. Mesmo com resistências, as comunidades relatam expansão sustentada por senso de identidade religiosa e cultural e por vínculos familiares reconstruídos a partir de tradições e memórias locais.
As raízes do fenômeno são anteriores à atual visibilidade. Nos anos 1960, descendentes de famílias católicas em cidades como Recife (PE) e Natal (RN) já reivindicavam origens judaicas e se aproximavam de sinagogas estabelecidas. A diferença, hoje, é a formação de comunidades inteiras compostas por convertidos, muitas vezes majoritariamente ex-evangélicos que dizem identificar, em relatos familiares, sinais de uma herança judaica preservada de modo discreto ao longo de gerações.
Esse cenário é tema do documentário “Os novos judeus do Nordeste: a tribo perdida do sertão”, produzido pela BBC News Brasil e publicado no YouTube em agosto de 2025. A reportagem percorre mais de mil quilômetros em quatro Estados para descrever histórias, motivações e desafios dos bnei anussim, situando o fenômeno entre fé, memória e identidade.
Entre lideranças cristãs, o crescimento de práticas judaizantes em igrejas evangélicas tem sido alvo de análise. Para o pastor Isaías Lobão, da Igreja Presbiteriana, professor de Teologia e membro do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), o quadro reflete fragilidades no ensino doutrinário: “A maior falha é a negligência do ensino bíblico. Quando se troca a exposição fiel da Palavra por entretenimento, pragmatismo ou experiências superficiais, a igreja perde seu alicerce. Sem doutrina sólida, o povo fica vulnerável a qualquer vento de novidade religiosa”, afirmou.
Ele acrescentou que o “espírito do nosso tempo”, marcado por relativismo e imediatismo, torna pessoas suscetíveis a tradições e símbolos percebidos como mais estáveis.
Lobão reconhece a busca por “raízes mais bíblicas”, mas aponta equívocos na compreensão do papel da Lei na teologia cristã. “Muitos não entenderam que toda a Lei apontava para Cristo. Falta catequese bíblica sólida. Em vez de verem o Antigo Testamento como sombra do que se cumpriu em Jesus, tratam os símbolos como caminho de salvação em si”. Segundo ele, leituras populares do dispensacionalismo e correntes neopentecostais contribuíram para confusões. “Há quem atribua a Israel um papel quase místico e paralelo ao de Cristo, o que leva muitos a crer que voltar às práticas judaicas é uma forma de se aproximar mais de Deus”.
Ao avaliar a migração de fiéis para ritos mais solenes, Lobão descreveu o movimento como reação a vazios espirituais em contextos pragmáticos, mas reforçou sua crítica teológica. “O cristão não precisa se apegar a sinais antigos quando já possui a realidade plena em Cristo, que é o Cordeiro definitivo e o verdadeiro templo de Deus”. Para ele, quando um evangélico abandona a fé cristã para adotar integralmente o judaísmo, há ruptura doutrinária. “É uma tragédia espiritual. O apóstolo Paulo disse que todos que se apoiam nas obras da Lei estão debaixo de maldição. Voltar à Lei como sistema religioso é rejeitar a graça. É trocar a cruz pela sombra”.
Na leitura do pastor, as conversões de igrejas em sinagogas não configuram caso isolado, mas indicam superficialidade doutrinária em parcelas do campo evangélico. “Sempre que a Palavra de Deus é relegada ao segundo plano, abre-se espaço para heresias. A história da Igreja mostra isso. Mas também é verdade que onde a Palavra é pregada fielmente, o erro é desmascarado e a Igreja é preservada”.
Ele não prevê mudança expressiva no mapa religioso nacional, mas aponta risco de “bolsões de confusão” e comunidades fragilizadas: “Não vejo isso como ameaça estatística, mas como alerta. Quando a Igreja perde o foco em Cristo e no evangelho puro, Deus retira o candeeiro”.
Sobre como reagir, Lobão defende retorno à centralidade das Escrituras, com pregação expositiva, discipulado e formação teológica. “O problema não será resolvido com medo ou discursos genéricos. É hora de arrependimento, reforma e renovação espiritual. Somente a Palavra, proclamada com clareza e poder, pode proteger o rebanho de Deus dos enganos que seduzem tantos corações”.
Em perspectiva acadêmica, o professor Luciano Gomes dos Santos, especialista em Ciências da Religião e Ciências Sociais e docente no UniArnaldo Centro Universitário (Belo Horizonte, MG), descreve um processo heterogêneo. Segundo ele, a conversão de templos evangélicos em sinagogas no Nordeste não é massiva, mas sinaliza reconfigurações identitárias. Entre os fatores estão mudanças de preferência litúrgica, mobilizações de lideranças locais, descobertas genealógicas e, em alguns casos, aquisição de imóveis religiosos por comunidades judaizantes. “Essas transformações costumam ser complexas e entrelaçam história, memória familiar e mobilizações religiosas contemporâneas”, afirmou.
Santos observa perfis variados entre os que migram: jovens e adultos de meia-idade, oriundos de áreas urbanas e periurbanas, com diversas inserções socioeconômicas. “A heterogeneidade é uma marca desse movimento. Portanto, é inadequado traçar generalizações rígidas sobre idade, classe social ou escolaridade dos envolvidos”, explicou. Os efeitos locais também são múltiplos: há revitalização de espaços, novas redes comunitárias e atenção externa, mas também conflitos de vizinhança e dúvidas sobre pertencimento quando rituais e usos do templo mudam. “O impacto concreto depende muito de como a transição foi negociada com a comunidade local e de que tipo de integração social as novas comunidades são capazes de promover”, disse.
Quanto ao potencial de crescimento, Santos vê expansão situacional, condicionada à convergência entre descobertas genealógicas, mobilização comunitária e apoio institucional. A continuidade dependerá da consolidação de estruturas locais e da manutenção de práticas sustentáveis. Entre as motivações estão a busca por ritualização, a valorização de tradições percebidas como ancestrais, a insatisfação com dinâmicas institucionais em igrejas evangélicas e o apelo midiático. “Em alguns casos, relatos familiares são ressignificados como parte de uma herança judaica, o que reforça essa reconfiguração identitária”, apontou.
Para o pesquisador, o fenômeno — embora localizado — acompanha tendências globais da religiosidade contemporânea, como a procura por identidades étnico-religiosas alternativas e a reapropriação de elementos ancestrais em diálogo com redes sociais, mídias digitais e diásporas. “O que observamos é um fenômeno local, mas que dialoga com tendências globais da religiosidade contemporânea. Ele revela como a fé, hoje, também é uma construção identitária em constante negociação com a história, a cultura e a memória”, concluiu, de acordo com a revista Comunhão.