A disciplina eclesiástica é reconhecida nas Escrituras e historicamente utilizada pelas igrejas cristãs para preservar a doutrina, a unidade e a conduta moral de seus membros. No contexto brasileiro, sua aplicação deve observar não apenas fundamentos teológicos, mas também os limites legais estabelecidos pela Constituição Federal e demais normas civis.
A advogada Danielle Maria Leão, especialista em Direito Religioso e integrante do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), afirma que o ponto de partida para discutir os limites da disciplina eclesiástica é o princípio da laicidade do Estado. No modelo brasileiro, essa laicidade não implica separação hostil entre Igreja e Estado, mas uma relação de “colaboração respeitosa”, conceito definido pelos juristas Tiago Rafael Vieira e Jean Regina como laicidade colaborativa.
Nesse sistema, o Estado reconhece a autonomia das instituições religiosas, garantindo liberdade para formular doutrinas, nomear ministros, definir liturgias e aplicar normas internas de disciplina. Essa prerrogativa, explica Leão, é expressão da liberdade religiosa, prevista no artigo 5º da Constituição. Contudo, ela ressalta que essa liberdade não é absoluta. “Nenhuma forma de disciplina pode violar a dignidade, a honra ou a imagem de uma pessoa”, afirma.
Práticas que resultem em exposição pública, humilhação ou constrangimento podem configurar ilícito civil ou penal. A especialista adverte que a divulgação indevida de informações pessoais, a ausência de direito de defesa e a motivação discriminatória podem gerar responsabilização judicial e indenizações por danos morais.
Ato interno
Leão enfatiza que a disciplina eclesiástica deve ser compreendida como ato interno de autogoverno, não como punição pública. Sua finalidade, explica, é pedagógica e restauradora, voltada à reconciliação e à preservação espiritual do fiel. Para isso, é essencial o sigilo e a discrição nos processos internos. “A preservação da honra, da vida privada e da integridade emocional dos envolvidos é essencial. O princípio da confidencialidade eclesiástica deve ser rigorosamente observado”, pontua.
Quando envolve crianças e adolescentes, a advogada destaca que é obrigatório seguir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e garantir a participação dos responsáveis. Qualquer correção fora desses parâmetros, observa, pode configurar violação de direitos e até encobrimento de crimes.
Responsabilidade das igrejas
A especialista afirma que igrejas podem ser responsabilizadas civil ou penalmente se a disciplina for aplicada de modo abusivo. Casos que envolvam discriminação, perseguição, constrangimento ou uso indevido da autoridade espiritual configuram violação de direitos. “O abuso do poder religioso é uma realidade que vem ganhando atenção jurídica. Constrangimento ilegal, por exemplo, está tipificado no Código Penal. Nenhuma pessoa, nem mesmo dentro de um ambiente religioso, pode ser forçada a fazer ou deixar de fazer algo sob ameaça ou coerção”, destaca Leão.
Ela acrescenta que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) também se aplica às igrejas, exigindo cuidado com dados pessoais e sensíveis dos membros. O vazamento ou uso indevido dessas informações pode resultar em sanções legais.
Estatuto, regimento e garantias
Para assegurar legalidade e legitimidade aos processos internos, Leão recomenda que toda igreja possua estatuto e regimento interno aprovados em assembleia, com regras claras sobre os procedimentos disciplinares. “Esse documento deve prever o contraditório e a ampla defesa. As decisões precisam ser colegiadas, nunca unilaterais”, explica.
Ela reforça que os processos devem ser transparentes, respeitosos e sigilosos, e que o objetivo da correção deve ser a restauração espiritual, não a exclusão. “Quando a autoridade espiritual é usada para perseguir, manipular ou constranger, ultrapassa-se o limite da autonomia religiosa e entra-se no campo da violação de direitos humanos”, afirma.
Liberdade religiosa
Para Leão, a liberdade religiosa, embora seja um direito fundamental, encontra limites nos demais direitos previstos pela Constituição. O Estado, explica, tem o dever de intervir quando práticas religiosas são utilizadas para justificar abusos. “A disciplina eclesiástica abusiva não só fere a Constituição, como também contradiz a própria teologia cristã, que tem como princípio a dignidade da pessoa humana.”
Segundo a advogada, a igreja que busca agir conforme o Evangelho deve pautar-se pela legalidade, ética e respeito aos direitos humanos. “Liberdade religiosa e direitos humanos não são excludentes — devem caminhar juntos”, conclui.
Fundamentos bíblicos
O advogado Rafael Durand, também especialista em Direito Religioso e membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB/PB, afirma que a legitimidade da disciplina eclesiástica depende de dois fundamentos principais: princípios bíblicos e garantias constitucionais.
Ele explica que, do ponto de vista teológico, a correção deve seguir a ética cristã da restauração, conforme textos como Mateus 18:15-17 e Gálatas 6:1. No plano jurídico, é essencial respeitar o devido processo legal, assegurando contraditório e ampla defesa, direitos previstos nos incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição Federal. “O membro acusado precisa ser informado previamente sobre o motivo da disciplina, ter oportunidade de se manifestar e ser ouvido. A correção deve ser conduzida com verdade, misericórdia e foco na restauração”, explica.
Limites jurídicos
Durand destaca que, embora o artigo 5º, inciso XVIII da Constituição garanta autonomia às instituições religiosas, essa liberdade não é ilimitada. “A igreja é livre para definir sua doutrina e práticas internas, mas deve respeitar os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana”, afirma.
Ele ressalta que exposições vexatórias e humilhações públicas violam tanto princípios cristãos quanto o ordenamento jurídico, podendo configurar constrangimento ilegal ou dano moral. O advogado recomenda que cada comunidade mantenha regimento interno claro e aprovado, com regras conhecidas por todos os membros, para garantir previsibilidade e segurança jurídica.
Sigilo pastoral
Outro aspecto enfatizado por Durand é o sigilo pastoral, protegido pelo artigo 5º, inciso VI da Constituição e pelo artigo 207 do Código de Processo Penal, que dispensa ministros religiosos de testemunharem sobre fatos revelados sob confidência espiritual. “O sigilo é expressão da liberdade religiosa e da inviolabilidade de consciência, mas não deve ser confundido com omissão diante de crimes”, explica.
Em casos que envolvam abuso de menores ou violência, o advogado afirma que existe um dever moral e, em alguns casos, legal de comunicar as autoridades competentes. “O sigilo existe para promover restauração, não para proteger a impunidade”, resume.
Transparência e prudência
Durand recomenda que decisões disciplinares sejam colegiadas, conduzidas por conselhos eclesiásticos, e que todas as etapas sejam devidamente documentadas, com atas e comunicações internas preservando o sigilo. Ele cita 1 Timóteo 5:19, que orienta que acusações contra líderes religiosos sejam tratadas com prudência e testemunhas.
Para ele, a integração entre conselhos jurídicos e teológicos é essencial para equilibrar fidelidade doutrinária e conformidade legal. “Enquanto os pareceres jurídicos asseguram obediência à legislação civil, os pareceres teológicos garantem coerência com a fé cristã”, afirma.
Prevenção de abusos
Um dos principais desafios, segundo o advogado, é a falta de formação jurídica entre líderes religiosos. Ele defende capacitação contínua em Direito Religioso, mediação de conflitos e proteção de dados, para evitar litígios e proteger a imagem institucional das igrejas. “A boa intenção não basta. É necessário conhecimento para que atitudes corretivas não se tornem práticas ilícitas ou abusivas”, pontua.
Durand conclui que a disciplina eclesiástica deve sempre buscar a restauração e não a punição pública. “Jesus ensinou a corrigir em particular, com amor e discrição (Mateus 18:15). Do ponto de vista jurídico, a dignidade, a honra e a imagem são valores constitucionalmente protegidos. A ética cristã e o Direito convergem nesse ponto: ambos exigem justiça temperada com misericórdia”, afirma, de acordo com a revista Comunhão.