O governo da Espanha, liderado pelo primeiro-ministro Pedro Sánchez, apresentou em 16 de outubro uma proposta para incluir o direito ao aborto na Constituição, medida que, se aprovada, tornaria o país o segundo do mundo — após a França — a garantir esse direito em sua Carta Magna. A iniciativa gerou ampla reação política e religiosa, especialmente entre grupos conservadores e evangélicos.
Em comunicado oficial, a Aliança Evangélica Espanhola (AEE) classificou a proposta como “demagógica” e “contradição moral”, acusando o governo de banalizar a vida humana. “Acreditar que eliminar uma vida é um direito fundamental é sinal de uma mentalidade regressiva, própria de civilizações antigas e não de uma sociedade que se diz evoluída”, afirmou a entidade.
A AEE também criticou a falta de políticas públicas voltadas a alternativas ao aborto, como adoção, apoio psicológico e redes de amparo, destacando que muitas mulheres permanecem “sozinhas e desinformadas diante de uma decisão complexa”.
A organização contestou ainda o uso do termo “direitos reprodutivos”, que definiu como “paradoxo linguístico”, argumentando que o aborto representa a interrupção da reprodução, e não sua proteção. Outro ponto de controvérsia é a criação de registros de profissionais de saúde que se recusarem a realizar abortos por motivos éticos ou religiosos. Segundo a AEE, a medida equivaleria a uma forma de perseguição indireta, por supostamente expor médicos pró-vida a retaliações e exclusão no sistema público.
O debate ocorre em meio à divulgação de novos dados sobre o aumento do número de abortos no país. Segundo o Ministério da Saúde da Espanha, foram registrados 106.172 procedimentos voluntários em 2024, um crescimento de 2,9% em relação a 2023. O número é um dos mais altos desde a promulgação da atual Lei do Aborto, em vigor desde 2010.
Do total, 94,6% dos casos foram realizados a pedido da mulher, sem risco médico envolvido, enquanto 5% ocorreram por razões clínicas, como risco à saúde ou malformação fetal, conforme informações do Evangelical Focus.
O levantamento mostra que mulheres entre 20 e 28 anos representam cerca de 38% dos abortos realizados. Entre adolescentes com até 19 anos, foram registrados mais de 11 mil casos, revelando incidência significativa entre jovens. Outro dado indica que mais de 70% dos abortos ocorreram em clínicas privadas, apesar do aumento gradual da participação do sistema público, que respondeu por 21,25% dos procedimentos — o dobro do registrado há uma década. Entre 2019 e 2024, as comunidades autônomas destinaram aproximadamente 150 milhões de euros a clínicas particulares para custear procedimentos fora da rede estatal.
O relatório também aponta variações por origem e região. Embora a maioria das mulheres que recorrem ao aborto seja espanhola, a proporção de mulheres latino-americanas e caribenhas passou de 17% em 2015 para 22% em 2024. As regiões com maiores índices continuam sendo Catalunha, Madrid e Ilhas Baleares. O menor número recente de registros foi observado em 2020, com pouco mais de 88 mil procedimentos, reflexo das restrições de mobilidade durante a pandemia.
Com a proposta de reforma constitucional e o aumento dos índices, a Espanha retoma um debate central sobre os limites entre liberdade individual, responsabilidade social e valor da vida humana. Enquanto o governo defende o aborto, entidades religiosas e parte da sociedade civil alertam para as implicações éticas e espirituais da medida.