A última década testemunhou uma silenciosa revolução nos lares brasileiros. Os dados do Censo 2022, divulgados pelo IBGE, confirmam: 26,9% da população nacional — 58 milhões de pessoas — declaram-se evangélicas. Pela primeira vez, o grupo representa exatamente 1 em cada 4 brasileiros, configurando a maior mudança no perfil religioso do país desde 1872.
O avanço não é abrupto, mas fruto de uma migração espiritual gradual. Entre 2010 e 2022, os evangélicos cresceram 11 pontos percentuais, enquanto o catolicismo recuou 15,2% (de 64,6% para 49,4%). Esse movimento revela:
Geografias da fé: O Norte (36,8%) e Centro-Oeste (31,4%) lideram, com o Acre (44%) e Rondônia (41%) como estados-símbolo;
Urbanização e periferia: Igrejas instalaram-se em territórios de carência estatal, oferecendo redes de apoio social;
Cultura e identidade: Municípios como Arroio do Padre (RS) e Santa Maria de Jetibá (ES), ambos com colonização europeia, hoje têm 88% e 73% de evangélicos — substituindo tradições luteranas por pentecostais.
Novos contornos
Enquanto o Nordeste mantém hegemonia católica (63,9%), outras expressões ganham espaço:
Sudeste: Epicentro do pluralismo, concentra espíritas (2,7%), “sem religião” (10,5%) e outras crenças (4,9%);
Sul: Maior percentual de Umbanda/Candomblé (1,6%), com destaque para Rio Grande do Sul (3,2%);
Roraima: Laboratório da diversidade: 16,9% sem religião, 7,8% em outras espiritualidades e 1,7% em tradições indígenas.
O dado mais revelador: 244 municípios já têm maioria evangélica. Em 58 deles, ultrapassam 50% da população. São comunidades como Ananindeua (PA), onde 79% dos moradores frequentam templos neopentecostais.
Para o antropólogo Ronaldo Almeida (Unicamp), “isso reflete não só conversões, mas um projeto de ocupação territorial: cada igreja é um polo de assistência e pertença”.
Paradoxos
O crescimento evangélico convive com contradições:
Mulheres: Representam 58% dos fiéis, embora lideranças sejam majoritariamente masculinas;
Política: Bancada evangélica no Congresso saltou de 73 para 138 deputados entre 2010–2022;
Juventude: Entre jovens de 18–24 anos, 29% são evangélicos — o maior índice etário.
Nas ruas de Altamira (PA), cidade com 68% de evangélicos, o som de hinários mistura-se ao barulho de motos-táxi. Enquanto isso, em Teresina (PI) — onde 77,4% são católicos — procissões ainda enchem praças.
Dois brasis que coexistem, revelando uma verdade: a fé nunca foi estática. Como resume a historiadora Gisele Fonseca (UFMG), “O censo 2022 não mostra apenas números: conta a história de milhões que refizeram seu lar espiritual enquanto o país mudava sob seus pés”.
Os dados do Censo 2022 confirmam um novo eixo cultural no país. Resta saber como essa reconfiguração influenciará políticas públicas, direitos sociais e a própria ideia de “tradição brasileira” nas próximas décadas.