Um movimento de migração religiosa entre igrejas cristãs tem chamado atenção por suas motivações distintas. De um lado, ex-pastores evangélicos relatam conversões ao catolicismo frequentemente motivadas por experiências sobrenaturais com Maria. De outro, ex-sacerdotes católicos indicam que sua transição para denominações evangélicas ocorreu principalmente através da leitura sistemática da Bíblia.
O caso do ex-pastor Sidineh Woster Veiga, da Assembleia de Deus, ilustra a primeira tendência. Em seu testemunho, Veiga relata três aparições marianas que culminaram em sua conversão ao catolicismo. Relatos semelhantes surgem em depósitos online, como o de Milton Junior, que menciona a aceitação dos dogmas marianos após leitura de textos apócrifos.
Na direção oposta, o livro “Verdadeiramente Livres” (Edições Fiel, 2004) documenta dez ex-sacerdotes católicos de diversas nacionalidades que se tornaram evangélicos. O autor Richard Bennett registra que todos os depoentes atribuíram sua mudança ao estudo direto das Escrituras.
O pastor presbiteriano José Ernesto Conti, que analisou ambos os fenômenos em um artigo publicado na revista Comunhão, observa uma ironia contemporânea: “Enquanto evangélicos migram ao catolicismo por experiências extrabíblicas, católicos encontram no evangelicalismo através da leitura bíblica”.
Ele relata: “Na maioria dos depoimentos de ‘evangélicos’ que tornaram-se católicos percebi que o ponto central da conversão foi a fé em Maria. Com muita curiosidade, peguei o livro do R. Bennet para ler e saber o que levou vários padres, alguns renomados e até com funções no Vaticano, a se tornarem evangélicos. E pasmem, todos, simplesmente TODOS, afirmaram a mesma coisa: ‘comecei a ler a Bíblia …e minha vida mudou’”.
Com base nisso, Conti questiona se muitas igrejas evangélicas estariam negligenciando o estudo das Escrituras em favor de cultos temáticos e experiências emocionais, algo que se distancia da tradição cristã histórica, incluindo a Reforma Protestante, que resgatou a autoridade das Escrituras para o culto.
O fenômeno ocorre num contexto religioso brasileiro marcado por fluidez denominacional, o que pode estar relacionado à falta de dedicação ao estudo profundo da Bíblia. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 20% da população mudou de religião ao longo da vida, com significativa mobilidade entre denominações cristãs.
Especialistas em sociologia da religião apontam que esses movimentos refletem buscas por diferentes ênfases espirituais – seja na experiência sobrenatural, no apelo à tradição ou no estudo textual das Escrituras.
Centralidade da Bíblia
A Bíblia exerceu papel central na Reforma Protestante do século XVI como fundamento de autoridade doutrinária. Os reformadores, liderados por Martin Lutero, defendiam o princípio do sola Scriptura (somente a Escritura), que estabelecia a Bíblia como única fonte infalível de revelação divina, em contraposição à tradição eclesiástica da Igreja Católica.
Esta ênfase permitiu questionar doutrinas e práticas não explicitamente baseadas nas Escrituras, como a venda de indulgências. A tradução do texto sagrado para línguas vernáculas – como a famosa tradução de Lutero para o alemão (1534) – foi crucial para permitir o acesso direto dos leigos ao texto bíblico, democratizando o conhecimento religioso e enfraquecendo o monopólio interpretativo do clero católico.
Além de sua autoridade teológica, a ampla disseminação da Bíblia, impulsionada pela recente invenção da prensa móvel de Gutenberg, catalisou transformações sociais e culturais. O acesso direto às Escrituras fomentou a alfabetização, estimulou o exame individual e a interpretação pessoal (o sacerdócio de todos os crentes) e permitiu a formação de novas identidades confessionais baseadas em leituras específicas do texto.
Doutrinas protestantes fundamentais, como a justificação somente pela fé (sola fide), foram extraídas e defendidas com base em leituras minuciosas de livros como Romanos e Gálatas. Desta forma, a Bíblia tornou-se não apenas o alicerce doutrinário, mas também o agente prático que redefiniu a relação do fiel com a fé e estruturou as novas igrejas reformadas.









































